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De 7 de Abril a 12 de Junho de 2004 - Entrada Livre
Iluminações e Liturgia
Cada vez se me afigura mais haver em Laura Cesana uma intensa área de criação que se aproxima da liturgia. Os seus meios são muito simples, até mesmo a representação se reconhece nessa simplicidade; porém, algo de muito complexo, como que uma procura pessoal da transcendência flui através deles. O resultado, a obra, oscila então entre uma quase ingenuidade liberta e um secretismo profundo e envolvente. A sabedoria de Laura Cesana parece ser, assim, um conhecimento não aprendido e no entanto sabido, como que um pré-conhecimento a cada ensaio da mão ressurgindo na sua exigência de imagem e de mistério.
Na sua maior parte, os materiais de fundo que usa pertencem-lhe. Existem, no decorrer acontecido de um testemunho da experiência, feito tanto ao lado como por dentro da pintura. Uma auto-poética, e também auto-biografia, de todos os instantes, assinalados num desdobrar de textos, de desenhos, de signos, num papel sem fim; ou então, em folhas soltas, esparsas, juncando o espaço de andar tanto quanto o da vida. Estes desenhos - chamemos-lhes assim - são feitos disso. Amassados, como o pão ázimo, de sobrepostas visões, redenções e simbolismos. Sobre eles passam águas de cor, como lamas ou iluminações; riscam-se-lhe raios e chuvas que submergem o que antes aflorava nítido e, assim, recria para que não se saiba senão como vestígio. A escrita é, por vezes, violenta, mesmo num pequeno espaço, à semelhança da ira súbita, e antiquíssima, de séculos, que se interpôs no caminho do sacrílego.
Laura Cesana tem, não direi exactamente investigado, que é uma palavra feita de lentes e de lâminas, mas pressentido, localizado, tocado - que já são palavras do léxico da sensibilidade sem deixarem de o ser da cultura - lugares onde, em Portugal, um vestígio hebraico se oculta, um vestígio do sinal secreto dos tempos da ocultação, mas algo que à pintura, por assim dizer, diga alguma coisa. Do que resta das sinagogas desfeitas que a antiga diáspora edificou, vários dos sinais aparecem nestes desenhos, lembrando-as, contidos entre molduras e recortes que se assemelham ao modo de os fazer popularmente, um modo singelo e caprichoso ao mesmo tempo, e sobretudo, festivo. A cor ganha, assim, os enquadramentos onde a lava de pintar ou os riscos, como uma corrente imparável, vão sobrepondo superfícies e fundos; uma matéria densa, avolumada, aglutina fragmentos de textos, frases, citações, caracteres, figuras e sinais sagrados. A textura dos desenhos alimenta-se dessa colagem exasperada onde se vê nitidamente tomar corpo a simulação do conhecimento e da revelação: a luta da luz e das trevas.
O ouro bíblico da menorah, os olhos de Deus, ilumina no espaço; mas tal como na sinagoga é um desenho numa parede, aqui aparece sobre essa iluminação; o vinho sagrado ainda se contém na garrafa ritual; a candeia de aviso para a reunião dos crentes nos tempos terríficos da repressão e do escárnio-aparece também, lembrando o seu aviso face aos perigos. E o hexágono salomónico sela com a sua gravidade de símbolo cósmico e a sua exaltação da simbologia mística, a fidelidade indestrutível do sacrifício.
Laura Cesana não demonstra uma razão, a pintura não serve naturalmente para isso. Ritualiza, como que intuitivamente, um cerimonial que conhece e que o desenho lhe permite lembrar. Ele está sempre presente, a partir do primeiro elemento que sobrepõe a outro. Nela a associação, como nos antigos tempos, é uma liturgia.
Fernando de Azevedo
Horário
de visita à Exposição: |
Dias úteis:
10h - 19h
Sábados: 10h-17h
Encerra domingos e feriados |
Entrada
Livre. Para mais informações sobre este
evento contacte o departamento de Relações
Públicas e Divulgação Cultural
da Biblioteca Nacional.
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